sábado, 29 de março de 2008

O grande debate planetário

Fonte: Agência Fapesp

Planeta ou anão, o que exatamente é Plutão? Desde que foi descoberto, em 1930, pelo norte-americano Clyde Tombaugh, então com apenas 24 anos, Plutão foi sempre considerado o nono e mais remoto planeta do Sistema Solar. Dessa forma foi descrito em livros de gerações de estudantes.

Tudo mudou em 24 de agosto de 2006, quando um comitê de especialistas reunido na 26ª assembléia geral da União Astronômica Internacional (UAI), realizada em Praga, República Tcheca, decidiu rebaixar Plutão, reclassificando-o como “planeta anão”. Desde então, o Sistema Solar passou a ter apenas oito planetas.


Poucas decisões foram tão polêmicas. Quase dois anos depois, a nova classificação está longe de ser unânime e tem levantado inúmeros debates calorosos, que vão das salas de aula dos ensinos fundamental e médio até os mais conhecidos centros de pesquisa em astronomia no mundo.


Um dos mais assíduos participantes de discussões sobre o assunto é Mark Sykes, diretor do Instituto de Ciência Planetária dos Estados Unidos, que discorda veementemente do rebaixamento. Em artigo publicado na edição desta sexta-feira (28/3) da revista Science, o astrônomo volta à carga, destacando que a reclassificação deu a “impressão infeliz de que ciência é feita por meio de votos em uma sala de conferência”.


“A definição da UAI restringe um ‘planeta’ ao nosso próprio Sistema Solar e exige que ele tenha ‘limpado a vizinhança ao redor de sua órbita’. Isso ignora mais de 400 objetos em órbita de outras estrelas que pesquisadores caracterizaram como ‘planetas’”, afirmou.


“Outra objeção é a falta de clareza sobre o que exatamente significa, para uma órbita, ser ‘limpa’. Por esse princípio, por exemplo, a grande população de asteróides localizada na órbita de Júpiter faria com que o gigante deixasse de ser um planeta, o que levaria a mais pesadelos para professores de todos os lugares”, destacou o astrônomo que chefiou o Grupo de Sistema de Dados Planetários da Nasa, a agência espacial norte-americana, de 2002 a 2006.


Sykes sugere nova definição: “Planeta é um objeto redondo (em equilíbrio hidrostático) em órbita de uma estrela”. Com isso, o número no Sistema Solar imediatamente pularia para 12, com a volta de Plutão e a “promoção” de Ceres, Caronte e Éris. “Há muitos outros, o que deixaria aberta a possibilidade de futuras descobertas”, disse.


O assunto promete esquentar ainda mais nos próximos meses. Em agosto, uma reunião que contará com a presença de astrônomos, professores e até mesmo de estudantes, será realizada na Universidade Johns Hopkins.


Intitulado “The Great Planet Debate: Science as Process”, o encontro pretende discutir a decisão da União Astronômica Universal e, eventualmente, sugerir nova definição de planeta a ser apresentada em futura reunião da entidade. Enquanto isso, Plutão continua sendo apenas um anão, apesar dos protestos de cientistas e estudantes.


O artigo The planet debate continues, de Mark Sykes, pode ser lido por assinantes da Science em www.sciencemag.org.

sexta-feira, 21 de março de 2008

Iniciativa feminina

De cada cem brasileiros, 13 desenvolvem atividade empreendedora em estágio inicial, aponta levantamento da Global Entrepreneurship Monitor (foto: T.Romero)

De cada cem brasileiros com idades entre 18 e 64 anos, cerca de 13 desenvolvem alguma atividade empreendedora, seja no comércio ou no setor de serviços. Isso faz com que o Brasil ocupe a nona posição entre os países com maior número de pessoas que abrem negócios. A principal motivação do fenômeno, no entanto, não é a inovação, mas a necessidade.

Os dados são da pesquisa Global Entrepreneurship Monitor (GEM) e foram divulgados na manhã desta quarta-feira (19/3) no Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais (Ibmec), na capital paulista, pelo Instituto Brasileiro de Qualidade e Produtividade (IBQP) e pelo Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae Nacional). A pesquisa GEM no país tem apoio do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT).

De acordo com o levantamento, que mediu o empreendedorismo em 42 países, a taxa de empresas em estágio inicial no Brasil, que engloba desde negócios em fase de implantação até os que têm 42 meses de mercado, subiu de 11,6%, em 2006, para 12,72% em 2007, totalizando cerca de 15 milhões de empreendimentos em atividade no último ano.

Nessa mesma categoria de empreendedores iniciais, os países que estão à frente do Brasil no ranking são: Tailândia (27%), Peru (26%), Colômbia (23%), Venezuela (20%), República Dominicana (17%), China (16%), Argentina (14%) e Chile (13%).

Esses resultados confirmam a vocação empreendedora dos brasileiros e representam um avanço no que diz respeito ao número de novos empresários nesses países. No entanto, há um preocupante paradoxo entre as duas motivações que levam à abertura de um novo negócio no Brasil: a oportunidade, quando os indivíduos realmente identificam um novo nicho de mercado, e a necessidade, relacionada à falta de opções de trabalho.

“Um trabalhador ambulante também é considerado um empreendedor. Ele compra sua mercadoria em outra empresa e a revende. Trata-se de uma atividade empresarial, precária, sem dúvida. Sua relação de parentesco é a de um primo pobre de outros empreendedores mais bem-sucedidos”, disse Marcelo Néri, chefe do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas (FGV), que participou da elaboração dos dados da pesquisa.

“O empreendedorismo por necessidade está relacionado à pobreza e à sobrevivência dos indivíduos. Esse tipo de empreendedor também é um capitalista, muitas vezes sem capital ou que emprega todos os seus recursos em atividades de risco”, afirmou Néri. A pesquisa GEM mostra que, em 2007, 57% dos empreendedores iniciais tinham uma renda familiar de menos de três salários mínimos.

O estudo aponta um crescimento acentuado no Brasil, de 2001 a 2007, da atividade empreendedora motivada pela necessidade, fazendo com que o contingente de empresários que abriram novos negócios de oportunidade, com mais planejamento, organização e foco no mercado, caísse de 60% para 39% no período.

Em comparação com os 12,72% dos empreendimentos brasileiros em estágio inicial no ano passado, em países como Estados Unidos, Inglaterra e Japão, em que os novos negócios são abertos quase que em sua totalidade motivados pela oportunidade, essa taxa foi de 9,61%, 5,53% e 4,34%, respectivamente. Em média, para cada cidadão dos países desenvolvidos com algum negócio em fase inicial, existem mais de dois brasileiros realizando atividades na mesma fase.

“A grande diferença, no entanto, está nos recursos investidos para o início do negócio. Os brasileiros empreendem cerca de US$ 5,5 mil, um capital considerado limitado para o sucesso dos empreendimentos, enquanto a média mundial é de US$ 68,7 mil. Os empresários chineses e norte-americanos investem cerca de US$ 41 mil e US$ 67 mil, respectivamente”, apontou Paulo Alberto Bastos, pesquisador sênior do Instituto Brasileiro de Qualidade e Produtividade (IBQP).

“Além disso, 62% dos empreendedores brasileiros recorrem a familiares como fonte de recursos para compor o capital necessário para iniciar o negócio. Menos de 10% desses empreendedores se voltam a instituições financeiras em busca de crédito”, afirmou Bastos.


Mais mulheres

O levantamento revela que, pela primeira vez desde que a pesquisa GEM começou a ser feita no Brasil, em 2001, o nível de empreendedorismo entre as mulheres ultrapassou o dos homens: em 2007 as brasileiras representavam 52% dos empreendedores adultos, entre 18 e 64 anos, contra 29% em 2001.

De acordo com os pesquisadores que apresentaram o estudo em São Paulo, esses dados confirmam a tendência apresentada pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad 2006) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) que indica que as mulheres buscam novos negócios para complementar a renda familiar e por estarem cada vez mais assumindo, nos últimos anos, o sustento do lar como chefe de família.

E a necessidade também é fator marcante de motivação para a mulher iniciar o empreendimento: em 2007, enquanto 38% dos homens empreenderam por necessidade, essa proporção aumenta para 63% entre as mulheres.

“O Brasil está observando uma revolução feminina em meio à pobreza nacional. Nas regiões Norte e Nordeste, por exemplo, apesar de serem minoria no mercado de trabalho, elas são as que mais se beneficiam com os programas de microcrédito ao pequeno empresário”, observou Marcelo Néri, da FGV.

O empreendedorismo feminino se destaca no comércio varejista, principalmente em artigos de vestuário e complementos (37%), na indústria de transformação, sobretudo na elaboração de produtos alimentícios e artefatos para viagem como malas e bolsas (27%), e na atividade de alojamento e revenda de alimentos (14%).

“Apesar do aumento observado nos últimos anos na taxa de sobrevivência das empresas brasileiras, hoje, dos cerca de 500 mil novos negócios abertos por ano no Brasil, cerca de 110 mil desaparecem nos dois primeiros anos”, disse o diretor técnico do Sebrae Nacional, Luiz Carlos Barboza.

“Os resultados da pesquisa GEM nos levam a reavaliar as ferramentas de apoio às micro e pequenas empresas do Sebrae, de modo a buscar mais eficiência no uso dos recursos a nós confiados pela sociedade, levando em conta questões importantes como a maior participação empreendedora das mulheres no mercado”, sinalizou.

Criado em 1999, o Global Entrepreneurship Monitor (GEM), coordenado pela London Business School (Inglaterra) e pelo Babson College (Estados Unidos), é um dos maiores estudos no mundo sobre a atividade empreendedora, cobrindo mais de 50 países consorciados, que representam 95% do PIB e dois terços da população mundial.

No Brasil, o GEM vem se consolidando desde 2000 como uma importante referência nacional para as iniciativas relacionadas ao tema. O projeto nacional é liderado pelo IBQP, em parceria com o Sebrae, a Federação das Indústrias do Estado do Paraná, Pontifícia Universidade Católica do Paraná e Centro Universitário Positivo.

Para a pesquisa brasileira de 2007 foram entrevistados dois mil indivíduos entre 18 e 64 anos, de todas as regiões brasileiras, selecionados por meio de amostra probabilística. O trabalho conta ainda com opiniões de 36 especialistas brasileiros. Entre os anos de 2000 e 2007 a pesquisa GEM entrevistou no país 17,9 mil indivíduos.

O estudo completo estará disponível em breve no site do IBQP, em www.ibqp.org.br.


Fonte: Agência Fapesp (Thiago Romero)

segunda-feira, 17 de março de 2008

Psicologia do fumante

Fumantes tendem a ser mais extrovertidos, característica que se relaciona com outras, como sociabilidade, afetuosidade, espontaneidade e facilidade de comunicação. Por outro lado, quando comparados com ex-fumantes e não fumantes, eles se mostram mais propensos a serem mais ansiosos, tensos e impulsivos. Essas características, por sua vez, do ponto de vista psicológico, têm forte relação com transtornos mentais como esquizofrenia e depressão.


Esse diagnóstico foi descrito em estudo realizado na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da Universidade de São Paulo (USP), que acaba de ser publicado no Jornal Brasileiro de Pneumologia. O trabalho apresenta uma revisão da literatura científica sobre a psicologia do tabagismo, a fim de eleger características da personalidade consideradas como obstáculos ao abandono do tabagismo.


Segundo os autores, a justificativa do estudo, cujos resultados tiveram como base a análise de dados de mais de 60 trabalhos de grupos de pesquisa nacionais e estrangeiros, é que a compreensão dos fatores de natureza psicológica associados ao consumo de cigarros pode contribuir para a criação de novas estratégias terapêuticas para o tratamento da dependência.


“Os programas de intervenção-padrão que têm como foco a terapia cognitivo comportamental, como por exemplo os indicados pelo Inca [Instituto Nacional de Câncer], basicamente vão orientar uma diminuição progressiva do uso do cigarro e uma maior atenção ao ambiente controlador, que são as situações do cotidiano que estimulam o consumo, seja após um cafezinho ou no happy hour com os amigos em um bar”, disse à Agência FAPESP o coordenador do trabalho, Ricardo Gorayeb, professor do Departamento de Neurologia, Psiquiatria e Psicologia Médica da FMRP.


“Conhecendo a personalidade dos usuários, após um atendimento individual, ou com base em dados de literatura, o terapeuta pode direcionar um aconselhamento clínico específico para cada indivíduo”, apontou Gorayeb, indicando que, apesar de a prevalência de consumo variar de continente para continente, a literatura indica que hoje, em média, 20% da população mundial é tabagista.


Seguindo essa linha de raciocínio, para aumentar o número de pacientes que de fato abandonarão o tabaco no fim do tratamento, o pesquisador aponta ser fundamental, antes de iniciá-lo, que a personalidade dos indivíduos e a presença de algum distúrbio psiquiátrico sejam cuidadosamente avaliadas pelos profissionais de saúde.


“Muitos casos no Hospital das Clínicas da FMRP, em que os pacientes eram ansiosos ou tinham depressão, foram solucionados com programas paralelos de relaxamento muscular e com o uso de medicamentos antidepressivos concomitantemente ao programa. Essa avaliação prévia deve ser feita para evitar a síndrome de abstinência”, explicou.

Motivação grande, resultados modestos
De acordo com o estudo feito na FMRP, apesar de a literatura mostrar que cerca de 70% dos fumantes afirmam querer parar de fumar, poucos conseguem: a maior parte precisa de cinco a sete tentativas antes de definitivamente largar o cigarro.


“Em outro trabalho, que conduzi nos Estados Unidos com um grupo de fumantes atendidos no Hospital John Hopkins, 35% dos pacientes deixaram de fumar no primeiro ano de tratamento. Esse índice de sucesso cai para cerca de 20% no segundo ano”, afirmou Gorayeb.


Isso ocorre, segundo ele, entre diversos outros motivos, pela tão conhecida síndrome de abstinência causada pela falta da nicotina, uma das principais, se não a maior, causas da manutenção do vício. De acordo com a literatura, seus sintomas variam em intensidade entre os usuários e se iniciam dentro de algumas horas após a interrupção, atingindo o auge no terceiro dia sem o cigarro.


“Esse desconforto piora ao anoitecer e as maiores queixas se referem à compulsão aumentada, à irritabilidade e à dificuldade de concentração. Tais alterações podem ser observadas por 30 dias ou mais, mas os sintomas de compulsão podem durar muitos meses ou anos”, aponta o artigo publicado.


Outro fator que dificulta o abandono é o ganho de peso, uma vez que estudos clínicos e epidemiológicos consultados pelos pesquisadores relatam que, normalmente, os fumantes pesam menos que os não fumantes e ganham peso quando param de fumar. O trabalho da FMRP aponta ainda a maior prevalência de tabagismo em pacientes portadores de transtornos psiquiátricos, em comparação com a população em geral.


“A hipótese é que a nicotina interfere no funcionamento dos sistemas neurotransmissores e exerce ações neuroendócrinas no organismo humano, o que pode influenciar no quadro psicopatológico dos usuários”, explica.


O trabalho foi realizado em parceria com Regina de Cássia Rondina, professora da Faculdade de Ciências da Saúde da Associação Cultural e Educacional de Garça (ACEG), e Clóvis Botelho, da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT).


Para ler o artigo Características psicológicas associadas ao comportamento de fumar tabaco, disponível na biblioteca on-line SciELO (Bireme/FAPESP), clique aqui

Fonte: Agência Fapesp (Thiago Romero)

sexta-feira, 14 de março de 2008

Mais gelo derretido

O nível do mar em todo o mundo tem subido constantemente nos últimos 80 anos. Isso é o que se sabe. Agora, um novo estudo aponta que o impacto do derretimento de geleiras é ainda pior do que se suspeitava.


A pesquisa foi atrás de um indicador que não se havia levado em conta: o volume de água represada artificialmente. O resultado indica para uma influência ainda maior do aquecimento global no derretimento polar. O estudo foi publicado nesta quinta-feira (13/3) no site da revista Science.


A elevação total no nível do mar no último século se deveu principalmente à combinação da expansão em volume da água nos oceanos e do derretimento de gelo em glaciares na Antártica e na Groenlândia, os dois fatores promovidos pelo aquecimento global.


Subtrair o efeito da expansão termal do aumento observável no nível do mar deveria dar uma boa estimativa da taxa de derretimento do gelo, mas essa equação deixa de fora um fator importante: a quantidade de água aprisionada em reservatórios. O novo estudo fecha essa lacuna.


Benjamin Chao e colegas da Faculdade de Ciências da Terra da Universidade Central Nacional de Taiwan fizeram uma extensa análise do aprisionamento de água promovido pelo homem. Os cientistas calcularam o volume de água represado artificialmente desde 1900, em quase 30 mil reservatórios com capacidade nominal conhecida.


O resultado é o impressionante total de 10,8 mil quilômetros cúbicos, suficientes para reduzir a magnitude do nível global do mar em 3 centímetros.


Nos últimos 50 anos, pós-Segunda Guerra Mundial, quando aumentou grandemente o número de reservatórios, o estudo calculou a diminuição no nível global do mar em uma média de 0,55 milímetro por ano – estima-se que o aumento no nível global do mar tenha sido de cerca de 18 centímetros no século 20.


A conclusão é simples: se os reservatórios baixaram o nível do mar, a elevação promovida pelo derretimento de gelo no planeta foi maior do que se imaginava. Ou seja, o impacto do aquecimento global tem uma relevância ainda maior.


O artigo Impact of artificial reservoir water impoundment on global sea level, de Benjamin Chao e outros, pode ser lido por assinantes da Science em www.sciencemag.org.

Fonte: Agência Fapesp

sexta-feira, 7 de março de 2008

Visão de dentro

Fonte: Agência FAPESP (por Fábio de Castro)

Os historiadores têm à disposição documentação suficiente para compreender com clareza as causas e conseqüências da vinda da família real para o Brasil. Mas, até recentemente, não havia registros confiáveis sobre o que ocorreu entre o dia 29 de novembro de 1807, quando a corte deixou Lisboa, e o dia 7 de março de 1808, há exatos 200 anos, quando os Orleans e Bragança desembarcaram no Rio de Janeiro.

A história da viagem propriamente dita acaba de ganhar, pela primeira vez, detalhes com base em fontes primárias. Consultando os diários de bordo dos navios ingleses que participaram da jornada, o pesquisador Kenneth Light conseguiu dados inéditos, revelados no livro A viagem marítima da família real: a transferência da corte portuguesa para o Brasil, que será lançado nesta sexta-feira (7/3) no Rio de Janeiro.

Segundo Light, antes de sua pesquisa, realizada durante dez anos, os relatos existentes sobre o traslado tinham como base o livro A vinda da família real portuguesa para o Brasil, de 1810, do oficial britânico Thomas O´Neil, que por sua vez se baseava apenas em testemunhos.

“As informações de O’Neil eram incompletas. Ele acompanhou os navios até a saída do Tejo, mas ali foi enviado para a tomada de uma fortaleza e não participou da viagem”, disse Light à Agência FAPESP.

O’Neil relatou em seu livro que, antes da partida, D. João recebeu a bordo o general Junot, comandante das tropas francesas que invadiram Lisboa. O encontro, segundo Light, jamais ocorreu. “Foi imaginação de O’Neil. Os registros mostram que a frota saiu na manhã do dia 29. Junot chegou às 4 horas da manhã do dia 30, mais de 20 horas depois da partida”, afirmou.

Os diários de bordo também mostraram, segundo Light, que a viagem não foi uma fuga desesperada motivada pela chegada iminente de Napoleão. “Foi um projeto estratégico planejado minuciosamente por seis meses”, disse.

Executivo aposentado, o pesquisador nascido no Brasil e educado na Inglaterra é membro da British Historical Society of Portugal e diretor da Sociedade de Amigos do Museu Imperial de Petrópolis. Em 1990, Light começou a se dedicar à pesquisa sobre a viagem da corte portuguesa.

“No início, eu buscava os diários de bordo dos navios portugueses em arquivos no Brasil e na Europa. Mas descobri que esses registros não existiam. Comecei então a buscar os diários dos 16 navios ingleses que bloqueavam o Tejo em 1807 e os encontrei, intactos, no arquivo geral da coroa inglesa”, explicou.

Entre 1991 e 1995, Light transcreveu o conteúdo dos diários de bordo – ou “livros de quarto”, no jargão marítimo. O resultado foram 40 volumes de 600 páginas cada. A redação em inglês do século 19, em linguagem técnica, representou um desafio, segundo o pesquisador.

“Precisei aprender como funcionava um navio da época, como se manobravam as velas, técnicas de navegação, quais eram os procedimentos de higiene e como era a alimentação. Muita coisa estava abreviada, como os nomes das mais de 30 velas de cada navio”, disse.

Em 1995, doou os arquivos para algumas das principais bibliotecas do mundo e seu trabalho se tornou referência para pesquisa sobre a viagem marítima da família real e serviu de base para livros de outros historiadores. Light passou a ser convidado para palestras sobre o assunto em diversos países.

Em novembro de 2007, Light lançou, em Portugal, Transferência da capital e corte portuguesa para o Brasil: 1807-1821. A obra, cuja primeira edição está esgotada, traz a iconografia dos navios, mapas da viagem e os tratados que precipitaram a partida da família antes da chegada das tropas napoleônicas. A edição brasileira que sai agora é uma versão reduzida, sem ilustrações.

Segundo Light, os diários de bordo não trazem comentários políticos ou pessoais. É um relato estritamente técnico, mas bastante rico em detalhes: cada dia ocupa uma página e os acontecimentos eram registrados a cada hora.

Para produzir os livros, além dos diários de bordo o autor recorreu à correspondência trocada entre almirantes ingleses e representantes britânicos em Portugal, além do diário pessoal do comandante do esquadrão que mantinha o Tejo sob bloqueio, William Sidney Smith.


Mudança de perspectiva

O livro, segundo Light, pode ajudar os historiadores a reinterpretar alguns fatos. “Ao zarpar, os navios pegaram um vento sudeste, com o mar de través – o que significa uma situação muito adversa – e há relatos dizendo que houve terror, que os passageiros queriam voltar. Isso não aconteceu. Os portugueses tinham 300 anos de experiência marítima e não tiveram o menor problema com uma tempestade típica do inverno no Atlântico”, apontou.

A expertise da navegação portuguesa fica provada pelos registros nos diários. As tripulações amarraram as vergas, tomaram as providências necessárias, viraram em direção à Groenlândia e, com as ondas batendo por trás, seguiram tranqüilamente. No terceiro dia o vento mudou e os barcos começaram a rumar para o sul. No quarto dia, passaram a latitude de Lisboa.

Eram 18 navios de guerra portugueses, 13 navios britânicos e 25 navios mercantes. No dia 5 de dezembro, parte do esquadrão britânico voltou a Lisboa e apenas quatro navios continuaram escoltando os portugueses até o Brasil. A decisão de passar pela Bahia, segundo Light, não foi forçada pela falta de água e comida, como se divulga.

“Os comandantes tomaram apenas decisões corretas. O capitão James Walker, do Bedford, um dos navios ingleses, registra que o navio entrou em Salvador com 75 toneladas de água e comida para mais dois meses e meio. A parada em Salvador se deu porque, a partir do dia 3 de janeiro, os navios ficaram por dez dias em uma calmaria que exasperava a população, depois de 54 dias no mar”, disse.

Severamente castigados pelas sucessivas tormentas de inverno, que causaram avarias consideráveis, todos os navios chegaram ao seu destino, segundo Light. “Isso reflete a qualidade dos oficiais e das guarnições, assim como do projeto e da construção dos navios; a experiência de vários séculos navegando regularmente através dos oceanos, em condições de tempo variadas.”


Retrato da chegada

Além da pesquisa e dos livros, Light contratou, em 1998, o pintor inglês Geoff Hunt, especialista em marinas, para retratar o momento da chegada da corte portuguesa ao Rio de Janeiro, às 15 horas do dia 7 de março. Durante um ano, Light forneceu informações minuciosas ao pintor.

“Cruzei os dados dos navios, que indicavam, nos pontos cardeais, pontos de referência de seu posicionamento na baía. Com aqueles dados, usei uma carta marítima moderna para traçar as linhas de direção para cada referência e consegui localizar o ponto exato onde pararam”, disse.

Para confirmar o registro, Light alugou um barco e percorreu a baía de Guanabara com um aparelho de navegação GPS, alcançando pessoalmente a posição exata dos navios Marlborough, Príncipe Real, Afonso de Albuquerque, Medusa e Bedford. “Dali, fotografei tudo ao redor. Com essas informações o pintor construiu uma maquete do acontecimento e a pintura ficou pronta em dois meses”, contou.

A tela de 1 metro por 45 centímetros faz parte da coleção pessoal de Light, mas foi emprestada ao Museu Histórico Nacional para exposição comemorativa que será aberta nesta sexta-feira (7/3), com presença dos presidentes do Brasil e de Portugal.

As comemorações pelos 200 anos da chegada da família real incluirão a reabertura da Igreja de Nossa Senhora do Carmo, no centro do Rio, totalmente restaurada, no sábado (8/3), em cerimônia que deve contar com a presença de descendentes da família real.

A Igreja, localizada no Paço Imperial, foi utilizada por D. João 6º, desde sua chegada ao Brasil, em 1808, para assinalar momentos importantes da família real portuguesa. O local foi cenário da coroação do próprio D. João, assim como da aclamação de D. Pedro 1º e D. Pedro 2º como imperadores e do batismo de príncipes, entre os quais a princesa Isabel.